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A ciência na sociedade e na educação

Em texto apresentado no III Fórum Métricas, o presidente do conselho da Fapesp, Marco Antônio Zago comenta os desafios do sistema de ciência e tecnologia e ensino público na contemporaneidade.

Sobre o autor

Marco Antonio Zago, Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, ex-Reitor da USP
Webof Science Research ID E-9442-2017

Em recente sondagem de opinião, o Instituto Datafolha detectou que subiu de 13% em 2014 para 42% em 2020 a parcela da população que pensa que, para tomar decisões importantes para o país, o governo deve ouvir mais os técnicos e especialistas. Igualmente, dados de outros países atestam o crescimento do prestígio público da ciência neste período da pandemia de coronavírus. O mundo recorre fortemente à ciência para enfrentar a maior emergência global em saúde, com reflexos nas áreas social e econômica e, no Brasil, também no domínio da política.  Os organizadores do simpósio nos perguntam “como garantir a inserção social da ciência no futuro?

Não há uma resposta simples ou única para essa questão. Entre muitos desafios que ela nos põe, escolhi destacar três aspectos que me parecem centrais, a saber, a relevância da ciência, a prática da pesquisa científica, e a relação entre a ciência e a educação. 

A Relevância e Visibilidade da Ciência

Em primeiro lugar, a ciência não apenas tem que ser relevante, como também precisa parecer relevante. Falamos então da imagem pública ou visibilidade da ciência, a ser vista como algo que deve fazer parte da vida diária dos cidadãos e ser um motor permanente das decisões políticas dos governantes. 

Toda a ciência que faz avançar o conhecimento é relevante, mas essa relevância nem sempre é perceptível para grande parte da sociedade, em especial num país com notório déficit de educação como o Brasil. Além do mais, a importância de descobertas fundamentais pode levar longo tempo para ser reconhecida, mesmo pelas pessoas educadas e pelos próprios cientistas.

Por isso, aqueles que cuidam das políticas científicas de agências, institutos e universidades terão que apoiar equilibradamente a pesquisa mais fundamental, sem compromisso com aplicação imediata, e também aquela que pode responder a necessidades presentes da sociedade, quer no desenvolvimento de soluções para a saúde, para a agropecuária, para a indústria, para a proteção da biodiversidade e redução das desigualdades, por exemplo.

No caso da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), significa tratar com igual atenção o desenvolvimento de pesquisas nas áreas de ciências sociais aplicadas, nas ciências naturais, nas humanidades e nas artes, como a pesquisa feita em cooperação entre indústria e universidade, aquela conduzida no âmbito de hospitais e medicina comunitária, por exemplo.

Nos últimos meses, desde o início da pandemia, a comunidade científica paulista, nas universidades, institutos, hospitais, esteve em evidência, pois completaram o sequenciamento do genoma do vírus dos dois primeiros casos da doença no Brasil em menos de 48 horas após o diagnóstico, e concluíram o sequenciamento de 500 isolados virais de pacientes de 21 estados do país, identificando as três linhagens prevalentes no território nacional. Duas empresas de equipamentos médicos estão fornecendo ao mercado modelos próprios de ventiladores pulmonares e de tomógrafos por impedância para monitoramento pulmonar da doença, com apoio da FAPESP dentro de um programa de incentivo à pequena empresa. Ao mesmo tempo, uma rede de laboratórios de universidades, hospitais e institutos, coordenados pelo Instituto Butantã, acabou com a fila de exames diagnósticos, essenciais para orientar o tratamento clínico e para controlar a progressão da epidemia.

Cerca de 10% do orçamento anual da FAPESP é investido em programas de inovação, que congregam as pesquisas mais próximas a suas aplicações no mercado, em especial aquelas que são desenvolvidas em empresas ou em projetos de cooperação entre universidades e empresas. A FAPESP investiu R$ 3 bilhões (valores de 2013) na pesquisa de agricultura em 20 anos entre 1993 e 2013, e nos últimos 10 anos financiou 4.500 bolsas e 2.600 projetos nesta área. Estudo recente mostra que cada R$ 1,00 investido na pesquisa agropecuária tem, em poucos anos, retorno de R$ 11,00; os investimentos da FAPESP têm um retorno 27 vezes o investido. Esse retorno aparece de formas variadas, como aumento da produção e produtividade, e aumento da geração de empregos.

Mas também, precisamos ter presente a necessidade de modernizar e intensificar nossos mecanismos de comunicação com a sociedade, para divulgar melhor e com mais objetividade o que fazemos, além de ouvir o que se espera de nós. Não podemos ignorar que o grau de ameaça e a intensidade com que a vida social foi desestruturada pela pandemia serviram para dar mais evidência à ciência e aos cientistas, especialmente em meios de comunicação de massa. O retorno à normalidade implicará uma redução desta projeção, e a comunicação de ciência precisa ocupar esse espaço.

A Prática da Pesquisa Científica

Quanto ao segundo ponto, as mudanças da sociedade certamente se refletirão no dia a dia da atividade científica, no planejamento e execução das pesquisas, e na vida dos laboratórios. Entre as novas características que a sociedade vai provavelmente incorporar após a pandemia estão a redução da mobilidade, o aumento das atividades digitais e à distância em relação às atividades presenciais, e a consequente redução das interações pessoais. 

É possível que os laboratórios, as pesquisas de campo e as comunitárias tenham que adotar novos designs; a colaboração internacional continuará a ser feita, mas provavelmente sem tanto movimento de pessoas. Por exemplo, experimentos planejados conjuntamente por pesquisadores de dois países diversos poderão ser executados nos respectivos laboratórios e os resultados compartilhados e analisados conjuntamente.

Essas mudanças decorrentes do novo comportamento da sociedade serão necessárias, para que as atividades práticas da ciência possam continuar a se concretizar num mundo em que os hábitos mudaram. Nós não seremos exceção. A indústria, o comércio, os hospitais, as escolas também mudarão suas rotinas.

A Relação entre a Ciência e a Educação

Finalmente, a ciência sempre foi a base para a educação nas universidades de pesquisa, seguindo o modelo humboldtiano ou aquela universidade a que faz referência Karl Jaspers [A Ideia de Universidade], “uma escola especial em que o estudante deve participar ativamente da pesquisa, adquirindo a disciplina intelectual e a educação que permanecerão com ele pelo resto de sua vida. Aquela escola ideal em que os estudantes pensam de maneira independente, ouvem criticamente e são responsáveis perante si mesmos”.

Nas últimas décadas essa base científica do processo educacional se enfraqueceu, ao mesmo tempo em que o conteúdo dos currículos passou a dominar o processo de ensino universitário, com prejuízo do método. 

Mas, tanto a revolução digital, que se acentuou muito agora, como a necessidade de “buscar soluções”, de resolver problemas para os quais não havia respostas prontas, quer na saúde ou na vida em sociedade e na economia, mostraram a inutilidade de tentar usar a resposta padrão que já estava pronta no conhecimento livresco. 

Em decorrência, tanto os jovens que estão nas universidades ou se preparando para entrar, como os professores, os políticos, os empresários, os profissionais viveram a experiência de ter que buscar respostas novas, experimentais, num processo organizado e lógico que caracteriza a ciência. A sociedade teve que se reinventar, regida pela lógica, pelo bom senso, pela experimentação controlada, ou seja, pela ciência e pelo método científico. 

Eu acredito que isso reforçará, nas universidades, a educação com base na solução multidisciplinar de problemas reais, em substituição ao ensino de conteúdos livrescos estanques em disciplinas tradicionais. Vejo a valorização do comportamento, a busca para consolidar a independência de pensamento e da capacidade de tomar decisões.  O fortalecimento da habilidade de comunicação e de argumentação. Uma educação que privilegia o respeito aos direitos dos outros, a capacidade de trabalhar em grupo, a habilidade de liderar, a constante referência aos valores éticos, o respeito pela vida e pelo ambiente. O currículo ideal dará primazia ao método e à abordagem, em relação ao conteúdo, pois são os instrumentos comportamentais que asseguram o sucesso nessa nova sociedade. 

Conclusão

A inserção social da ciência terá mais facilmente sucesso se ela for percebida como relevante pela sociedade, e se a comunidade científica adaptar o planejamento e a execução das atividades científicas às mudanças que ocorrerão quando a pandemia terminar. Mas, o sucesso definitivo e duradouro deverá advir de uma educação fundamentada fortemente na ciência, em todos os níveis, em especial nas universidades.  Desta forma, os profissionais, intelectuais e dirigentes empresariais e políticos das novas gerações reconhecerão melhor o valor da ciência e empregarão o método científico nas atividades diárias e tomadas de decisão.