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Transição para o digital frente à crise

O Pesquisador Luiz Nunes de Oliveira comenta os resultados de um survey realizado com docentes sobre a transição digital em 2020.

Sobre o autor

Luiz Nunes de Oliveira – Instituto de Física de São Carlos, USP

“Decifra-me ou te devoro.” O repto lançado pela COVID-19 não é novo, e nem são novas as condições que ela impôs: “Adapta-te a um mundo diferente; vê se consegue tirar proveito do que aprender.” Os desafios permearam quase todas as estruturas sociais e afetaram praticamente todas as instituições. A academia não foi exceção, e a quarentena atingiu em cheio a casa de máquinas das universidades – as salas de aulas, laboratórios e outros locais onde estudantes interagem com docentes e pesquisadores. Diferentes universidades responderam de formas distintas. A USP pertence ao grupo que, ainda em março, rebelou-se contra as propostas de interrupção. Para dar continuidade ao ensino formal, substituiria as atividades presenciais por aulas remotas.

A decisão súbita, tomada pela administração central sem consulta a servidores ou estudantes, causou transtornos. Alguns argumentaram que o ensino a distância é inferior ao presencial e que o sistema de aulas remotas seria, inevitavelmente, inferior aos cursos de EaD, visto que estes últimos são preparados com antecedência e se apoiam em premissas que a emergência invalidara. A título de exemplo, citou-se como auto-evidente a noção de que o estudante opta pelo EaD por saber que, em casa, disporá de um bom computador, fones de ouvido e uma mesa instalada em local tranquilo.  Alguns docentes se declararam despreparados para a nova tarefa, outros argumentaram que uma transformação somente faria sentido se fosse precedida de planejamento e ainda outros manifestaram grande preocupação com a qualidade do ensino e com questões práticas: falta de instrumentos, dificuldade para avaliar o aprendizado e inadequação da modalidade virtual para aulas de laboratório. Na esfera administrativa das unidades acadêmicas, não houve unanimidade. Enquanto alguns diretores aderiam entusiasticamente à iniciativa, outros assumiam postura negativa.

Para tentar convencer os céticos, a Reitoria fez notar que a comunidade dispõe de um instrumento para o trabalho. Já há mais de uma década, a Universidade mantém plataformas para comunicação digital entre professores e estudantes. A mais estruturada é a Moodle, que tem sido empregada, rotineiramente, em algumas disciplinas. Ela permite numerosas atividades, desde publicação de arquivos para leitura até iniciativas que estimulam a participação criativa dos estudantes, passando por vídeo-aulas e correção de provas ou trabalhos. As Pró-Reitorias de Graduação e Pós-Graduação elegeram a plataforma Moodle como instrumento padrão para realização e registro de atividades durante a quarentena. O volume de acessos ao endereço https://edisciplinas.usp.br cresceu enormemente, e o crescimento logo expôs lacunas e inconsistências, que, aos poucos, foram corrigidos.

Em resposta às queixas de estudantes que tinham dificuldade para acessar a internet, a Pró-Reitoria  ofereceu equipamento e custeou contratos com as operadoras telefônicas. O calendário escolar de 2020 foi reorganizado. O primeiro semestre letivo foi estendido do início para o final de julho; uma semana no final de agosto foi separada para treinamento em ensino remoto; o segundo semestre letivo foi deslocado para o período setembro-dezembro; finalmente, os primeiros meses de 2021 foram reservados para atividades especialmente prejudicadas pelo distanciamento, aulas de laboratório, por exemplo.

Algumas unidades acadêmicas, que tradicionalmente oferecem cursos de extensão na modalidade EaD, já dispunham de equipamento para gravação de aulas, produção de vídeos e outros recursos de apoio ao ensino remoto. Outras adquiriram equipamento e promoveram atividades especiais tais como reuniões virtuais para troca de experiências ou webinars com especialistas. 

Entre os docentes, um grupo minoritário se recusou a mudar e preferiu abandonar as disciplinas sob sua responsabilidade. A grande maioria, ao contrário, lutou para se familiarizar com equipamentos e técnicas desconhecidas e explorar as ideias e oportunidades que a nova modalidade descortina, conforme indicam tanto as informações fornecidas pela Pró-Reitoria de Graduação como as respostas colecionadas em um survey promovido pelo projeto Metricas.

1. Survey respondido por docentes de quatro unidades da USP

O survey foi realizado no final de abril de 2020. Um questionário foi enviado a uma amostragem do corpo docente da Universidade: dois departamentos (Administração, da FEA, e  Ciência Política, da FFLCH) e duas unidades (Faculdade de Direito e o Instituto de Física de São Carlos). Foram apresentadas questões sobre a aceitação da transição para o ensino remoto;  sobre a experiência prévia com essa modalidade de ensino; sobre as dificuldades que o docente enfrentou; sobre os recursos empregados na produção de aulas remotas; sobre os entraves; sobre outras forças que possam favorecer a adoção de tecnologias digitais; sobre o apoio recebido das administrações central e local; sobre desafios e oportunidades para aprimoramento; sobre a resposta dos estudantes; e sobre perspectivas para a adoção de tecnologias digitais depois de 2020.

As respostas dividem os docentes em três grupos, um com nenhuma, outro com alguma e um terceiro com muita experiência prévia na adoção de tecnologias digitais educativas. Todos os grupos valorizam o apoio da administração da unidade e da administração central, mas os menos experientes classificam como igualmente importante a ajuda de colegas. Todos acreditam necessitar de mais treinamento, e esse sentimento se correlaciona com a experiência: mais experiente o docente, maior é a vontade de se aperfeiçoar. A grande maioria pede treinamento continuado, em nítido contraste do cronograma fixado pela administração central. 

Grosso modo, os 40% que atenderam ao convite para participar do survey avaliaram positivamente a decisão de substituir o ensino presencial por atividades remotas. Exceção feita a atividades laboratoriais, acredita-se que os alunos terão aproveitamento e desempenho semelhante ao que teriam em outras circunstâncias, ressalvadas as dificuldades encontradas por uma parcela dos estudantes, decorrentes de restrições sócio-econômicas. Os docentes mostraram satisfação com seu próprio aprendizado, descreveram iniciativas inovadoras e declararam-se motivados para desenvolver atividades semelhantes no futuro, mesmo após o retorno ao ensino presencial.

2. Pesquisas de opinião dos discentes

Ao oferecer contas especiais e equipamento para acesso à internet, a Universidade removeu um dos mais elevados obstáculos à frente de uma fração do corpo discente. Outras dificuldades persistem, entretanto. Somente parte dos estudantes possui computadores em casa; os demais assistem às aulas nas cinco ou seis polegadas das telas de seus celulares. E há muitos outros problemas, além dos técnicos.

Algumas das unidades promoveram seus próprios surveys para colher a opinião dos estudantes. Em alguns casos, os próprios discentes organizaram consultas e divulgaram os resultados. A maioria expressa preocupação com o aprendizado e com os resultados das avaliações formais; sugere, por isso, adotar sistema mais flexível de avaliação.

Muitos alunos se queixam das condições impostas pela quarentena. Sentem falta do companheirismo, de sentar-se com alguns colegas em volta de uma mesa para preparar um relatório, de cutucar o colega ao lado antes de comentar uma expressão do professor, da satisfação de caminhar em bloco para o bandejão e de criticar a aula mal preparada que tinham suportado até o fim. Boa parte não tem, em ambiente doméstico, tranquilidade para se concentrar, quer porque as vinhetas dos comerciais na televisão atrapalhem, quer porque irmãos mais novos ou parentes idosos exigem atenção. Soma-se a dificuldade para manter horários e uma disciplina de estudo longe do ritmo imposto pelo vai-e-vem dos colegas. Soma-se, também, a angústia provocada pelas incertezas estampadas nas manchetes de jornais.

São problemas difíceis; medidas especiais poderão mitigar alguns deles, mas nada poderá resolvê-los antes do final do isolamento. Entretanto, parece meridianamente claro que a Universidade teria criado dificuldades muito mais sérias se houvesse decidido suspender as aulas.

3. Resultados no primeiro semestre letivo de 2020

A implantação da quarentena foi súbita e a mudança para o ensino remoto sequer chegou a ser discutida. Isso considerado, e dadas as circunstâncias e os temores iniciais, os resultados, até aqui, têm sido satisfatórios. Muito se aprendeu. Parte dos docentes se especializou em gravar vídeos apoiados em roteiros cuidadosamente elaborados, que sintetizam em 30 minutos o conteúdo que seria ministrado em 50 de aula presencial. Outros optaram por aulas síncronas, que são mais extensas porque os estudantes interrompem as apresentações para expressar dúvidas, mas, em compensação, são mais estimulantes. 

Em todos os casos, as gravações ficam à disposição dos estudantes, que podem revê-las para absorver melhor o material apresentado. Tais gravações são apenas parte do material gerado. Listas de exercícios e vídeos que focalizam a solução de exercícios instrutivos, notas de aula, contribuições de estudantes e simulações podem ser encontrados na plataforma Moodle, todos gerados nos últimos três meses. O cuidado na preparação das aulas e do material complementar parece compensar as limitações do ensino remoto, ainda que seja impotente frente à redução na qualidade de vida dos estudantes imposta pela quarentena.

Deve ser reconhecido que alguns cursos ou disciplinas foram mais prejudicados. São exemplos as aulas de laboratório e, no caso de ciências da vida, aquelas que dependem de contato com pacientes. Em outras disciplinas, nas quais o debate entre os estudantes é o principal instrumento, soluções especiais puderam ser encontradas. A autonomia que a governança da USP dá às unidades acadêmicas permite que cada uma delas resolva, a seu modo, problemas que a Pró-Reitorias não saberiam destrinchar.

Exceção feita a empecilhos pontuais, tais como a necessidade de contato com pacientes, não parece difícil, portanto, explorar a autonomia para harmonizar as ações nas diferentes áreas do conhecimento e garantir ensino remoto com aceitável qualidade em toda a universidade, mesmo em condições adversas. Há até mesmo espaço para exploração das diferenças com o objetivo de aprimorar o processo educativo, e isso nos conduz a outra discussão.

4. Oportunidades 

A diversidade cultural da USP é um dos componentes mais ricos do seu patrimônio. Cada unidade acadêmica é sede de uma maneira de pensar e agir. O ensino presencial de graduação se beneficia dessa diversidade, já que estudantes filiados a uma unidade frequentam salas de aulas em outras unidades do mesmo campus, principalmente nos primeiros anos de seus cursos. Mesmo assim, parece que a exploração fica bem aquém do potencial.

O ensino remoto nos convida a contemplar uma alternativa potencialmente enriquecedora. A USP abrange unidades acadêmicas com missões semelhantes sediadas em cidades distintas. A FEA e a FEARP, por exemplo. Cursos análogos são oferecidos em dois ou mais campi. O bacharelado em Química, por exemplo, é oferecido pela FFCLRP, em Ribeirão Preto, pelo IQ, em São Paulo, e pelo IQSC, em São Carlos. Sempre pareceu atraente a ideia de expor os estudantes de um dado campus ao ensino em outro local. Infelizmente, problemas práticos — transporte, horários, tamanho de salas — conspiram contra a concretização dessa ideia em cursos presenciais. Na modalidade remota, quase todas as dificuldades práticas desaparecem.

Esse é apenas um exemplo. Várias noções que parecem imbricadas com o ensino formal são, na verdade, descendentes do paradigma presencial. Se uma ou mais dessa noções forem questionadas, variantes promissoras poderão ser exploradas, com potencial para educar melhor nossos estudantes. 

Vale a pena comparar, nesse contexto, os desempenhos da Universidade nos domínios da pesquisa e do ensino. Quando se trata de pesquisa, até os estudantes de iniciação científica sabem que explorar novos métodos, enfrentar desafios e correr riscos gera resultados com mais qualidade do que trilhar caminhos já conhecidos e não se arriscar além das mudanças incrementais. No campo didático, até 2019, pouquíssimos trabalhavam com o mesmo espírito. Há, agora, oportunidade para explorar novos rumos. É tarde para testar novas ideias no primeiro semestre letivo, mas a prorrogação do calendário abre espaço para empreitadas inovadoras no segundo semestre. Motivação não falta, como demonstrou o survey descrito na Seção 1. Está aberta, portanto, uma janela de oportunidades.

Para que elas sejam bem aproveitadas, são necessários dois arrimos. O primeiro é o apoio da administração, no nível da unidade e no da administração central; este último será especialmente necessário para sustentar iniciativas interunidades. O segundo é a definição de diretrizes para avaliação do planejamento e dos resultados de projetos criativos. Não cabe aqui propor tais diretrizes, mas parece evidente que no seu ponto de fuga deve estar o objetivo maior da educação.

5. Etapas do processo educativo

Em linhas gerais, o aprendizado compreende três fases. A primeira compreende componentes operacionais. Quem quer jogar xadrez, começa com as regras básicas; se não passar dessa fase, dirá que sabe mexer as peças. Quem muda para uma cidade grande, precisa aprender, antes de mais nada, os caminhos de casa para o trabalho e para o supermercado. Na segunda fase, o aprendiz vai conhecer e reconhecer padrões. Quem mudar para São Paulo, logo perceberá que, em algumas pequenas regiões a geometria é retangular; em outras, é circular; e na maioria, irregular; que a numeração das linhas de ônibus dá informações sobre o itinerário; que a rede de ciclovias é desconexa; que as mãos das ruas em sua vizinhança se alternam. Aprenderá sobre o comportamento do trânsito e, aos poucos, se sentirá mais à vontade para explorar novas trajetórias. Atravessar a segunda fase exige muito, de quem ensina e de quem aprende.

A terceira fase, em comparação, é muito mais complexa. Nela o estudante formará uma imagem mental do tema e saber traduzi-la em palavras ou símbolos. O novo habitante da metrópole terá um mapa na cabeça e saberá explicar a um visitante estrangeiro como se vai do Largo da Batata até o Largo de São Francisco. 

No ensino formal, a missão do docente se divide em duas: garantir que o estudante complete a fase três e que, ao longo das três etapas, adquira espírito crítico. Em última análise, o espírito crítico é o diploma do cidadão instruído e deve ser o objetivo central do ensino universitário. 

Passar pela primeira fase, quer no ensino presencial, quer no remoto, é simples. Qualquer criança pode aprender a mexer as peças no xadrez; basta motivação e alguém que ensine. A segunda constitui problema mais difícil. Para atravessá-la, é necessário examinar o objeto de estudos sob diversas perspectivas, alternar abordagens analíticas e sintéticas, muita discussão e repetição. Nesse contexto, se for bem estruturado, o ensino remoto pode ser mais vantajoso, pois é nele é mais fácil oferecer visões estereoscópicas de qualquer tema: vídeos, simulações, gráficos.

Chegamos, assim, à terceira fase, aquela que tira o sono dos professores. Como o aprendizado nesta etapa se aproxima do processo de construção de uma linguagem, a ferramenta natural é a discussão. Para o docente, é fácil entremear questões binárias ou de múltipla escolha em seu monólogo, mas não é disso que se trata. Motivar os estudantes para que questionem e argumentem, a favor e contra, é tarefa difícil em qualquer modalidade de ensino. No ensino presencial, para muitos estudantes, é constrangedor ter que expor sua opinião e sua maneira de se expressar ao escrutínio dos colegas. Na modalidade remota, muitos se sentem mais confortáveis e expressam dúvidas que não teriam coragem de enunciar em voz alta. Tais perguntas constituem um tímido passo na direção desejada e muito raramente conduzem ao desejado diálogo. Podemos ver, entretanto, que elas revelam uma mudança de atitude em relação ao comportamento em sala de aula. Reconhecer que os estudantes se sentem confortáveis frente ao teclado indica um caminho a ser trilhado em busca do aprendizado pleno.

Mais especificamente, podemos ver que as tecnologias digitais pavimentam um percurso promissor, pois elas oferecem mecanismos para estimular os estudantes a articularem discussões. Exemplos de possibilidades são a produção de vídeos curtos em que um dos estudantes discorra sobre um tema específico; a apresentação de webinars produzidos e apresentados por um grupo de estudantes; a organização de videoconferências com um grupo de estudantes, coordenadas pelos próprios estudante, com participação do docente como observador; e a produção de animações. Em todos os casos, o objetivo não é gerar produtos de alta qualidade, mas sim abrir canais para que os estudantes expressem suas ideias e progridam na terceira fase do aprendizado.

6. Conclusões

A crise sanitária provocada pela COVID-19 empurrou a comunidade USP para uma modalidade de ensino que a maioria dos docentes pouco conhecia ou desconhecia. Uma fração amplamente majoritária reagiu bem e aproveitou os recursos tecnológicos a seu alcance. Chegamos satisfatoriamente ao final do primeiro semestre letivo.

A expectativa, agora, é maior. O desafio não é adaptar-se; é aproveitar as oportunidades que o ensino remoto oferece. A experiência adquirida nos últimos meses já permite identificar algumas dessas oportunidades. É provável que outras permaneçam ocultas, escondidas atrás de noções inadequadas herdadas do ensino presencial. Por isso, será necessário rever conceitos.

Sob óptica mais abrangente, percebe-se que a preparação tradicionalmente adotada pelo docente no início de cada semestre letivo terá de ser substituída por um plano estratégico com foco no objetivo maior da educação, discutido na Seção 5. Felizmente, haverá tempo durante o recesso escolar para planejamento, assim como já há material para discussões que poderão conduzir a novas visões do ensino remoto. Há também oportunidade para corrigir falhas, reestruturar a programação e introduzir inovações.

Ainda mais importante é estar atento ao futuro. O ensino presencial poderá ser notavelmente valorizado se os melhores resultados obtidos neste semestre aumentarem forem transportados para o ensino presencial e enriquecerem o diálogo em sala aula. Garantir que esse avanço ocorra, que o entusiasmo comprovado pelas respostas ao questionário discutido na Seção 1 seja aproveitado a favor da qualidade do ensino e que o aprendizado de 2020 não fique apenas como uma lembrança dos dias difíceis que vivemos é um desafio à frente das Pró-Reitorias de Graduação e Pós-Graduação. Se houver coordenação e estímulo, a comunidade responderá, mais uma vez, positivamente.