Nina Beatriz Stocco Ranieri
ORCID 0000-0002-8235-5459
Professora Associada | Associate Professor
Universidade de São Paulo | University of São Paulo
Faculdade de Direito | Law School
Departamento de Direito do Estado | Department of Public Law
Texto apresentado no IV Fórum Métricas: Diálogos com a sociedade
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Universidades são instituições complexas, submetidas a constantes pressões e desafios. A complexidade deriva não apenas das suas atividades-fim (ensino, pesquisa e extensão de serviços à sociedade), mas também de sua organização, estrutura e financiamento. Para as universidades públicas, o regime jurídico público é mais um fator de complexidade. Inevitavelmente, a governança universitária – entendida como o conjunto de processos decisórios voltados ao alcance dos objetivos institucionais, é permeada por tais circunstâncias. A garantia constitucional da autonomia universitária – poder instrumental destinado à melhor realização dos fins da universidade, é expressão do reconhecimento de tal complexidade.
Ambiente complexo e pressão permanente.
Ensino e pesquisa não são atividades triviais, nem de curto prazo. Basta lembrar que desenvolvidas em faculdades, institutos especializados, centros, núcleos, museus, requerem pessoal altamente especializado e suporte acadêmico. É necessário criar cursos de graduação e pós-graduação (com reconhecimento nacional), selecionar e designar professores para ministrar as respectivas disciplinas, avaliá-las e aprimorá-las, recrutar alunos por meio de exames vestibulares e formar profissionais. O mesmo se dá em relação à pesquisa, atividade voltada à sistematização de conhecimentos na qual se incluem programas como a iniciação científica, o pós-doutorado, os grupos de pesquisa; em determinadas áreas requerem infraestrutura laboratorial, insumos de alto custo e técnicos especializados. Subjacente a essas áreas identifica-se a liberdade acadêmica, princípio que amplia a complexidade institucional em face do alto grau de autonomia docente na definição de conteúdo e metodologia dos cursos assim como na de linhas e projetos de pesquisa.
Independentemente da forma organizacional (regime de direito privado ou direito público; dedicada a um único campo do conhecimento ou a diversos campos; com ou sem departamentos; multicampi ou não), a administração universitária inclui, por exemplo, as áreas de recursos humanos e de gestão de financeira e patrimonial. A primeira, é responsável pela seleção, registro, pagamento, controle de férias, licenças e aposentadorias de servidores docentes e não docentes, organização das respectivas carreiras (que se submetem a regimes jurídicos distintos: estatutário ou celetista). Além disso, há a contratação de servidores temporários, igualmente selecionados e avaliados. Numa universidade de pesquisa como a USP, por exemplo, esse universo compreende mais de 5.000 professores e cerca de 13.000 servidores não docentes.
Na área administrativa, importa assegurar a governança da instituição, em todos os níveis, em ambiente de decisões descentralizadas e poder disperso. Nesse campo também se incluem setores tão diversos quanto os de tecnologia de informação e comunicação, jurídico, gestão ambiental, segurança, entre outros. Quanto à gestão patrimonial, além da financeira, há que se proceder à dos campi e respectivas estruturas físicas – que compreendem museus, hospitais, bibliotecas e áreas para esportes, ademais de acervos bibliográficos, artísticos, biológicos, etc.
No limiar da terceira década do séc. XXI, às universidades de pesquisa de classe internacional outras exigências se impõem, agregando complexidade. A garantia de accountability é uma delas. Daí derivam os necessários controles internos (inclusive com a realização de sindicâncias e processos disciplinares), a existência de ouvidoria e de corregedoria financeira para assegurar transparência. Aqui não se trata apenas de cumprir exigências legais de transparência e prestação de contas, mas, sobretudo, de construir boa reputação.
Outras exigências contemporâneas são a internacionalização e a comunicação eficiente com a sociedade, sob pena de desconexão com a realidade e obsolescência. A primeira requer estruturas e pessoal habilitados para assegurar a cooperação com universidades nacionais e estrangeiras, visando ampliar a mobilidade de seus alunos e professores e, reciprocamente, a presença de alunos estrangeiros em seus cursos.
Submetida a pressões constantes por parte dos seus componentes (alunos, docentes, servidores, entidade mantenedora) e de agentes externos (sindicatos, associações, setor produtivo), a universidade está em permanente transformação, inclusive por força dos desafios que a sociedade lhe apresenta em razão de circunstâncias, influências e exigências as mais diversas.
Não há como se compreender ou pensar a governança universitária fora desse universo.
A governança universitária e seus desafios
Há inúmeras acepções do que seja governança universitária, as quais destacam diferentes ângulos do objeto. Para os fins deste breve artigo, tomo de uma definição simples, já apontada de início, e que toma dos fins da universidade como elemento central: a governança universitária consiste na capacidade de estabelecer processos decisórios aptos a assegurá-los, da melhor forma. Significa dizer, portanto, que não há um único padrão de governança, que diferentes processos podem ser estabelecidos em diferentes épocas e lugares, dependendo das circunstâncias, das estratégias para garantir continuidade, atualização, evolução ou preservação de valores.
Avaliar a governança universitária requer, portanto, resposta a 3 questões fundamentais, pelo menos: os processos decisórios são adequados para guiar a instituição? Para planejar o futuro? Para lidar com os desafios sociais, culturais, científicos, tecnológicos e econômicos?
O recente cenário de imprevisibilidade e mudanças abruptas provocado pela pandemia do Covid-19, desde 2020, é exemplo paradigmático da exposição da universidade a novos riscos que requerem respostas rápidas e seguras. Mas não é só: a inexorável evolução tecnológica que marca o século XXI, ou mesmo situações de instabilidade financeira, cortes de financiamento público de pesquisas, escrutínio da mídia e segurança cibernética, vêm pondo em xeque as estruturas de governança tradicionais, baseadas na gestão pelo corpo docente.
O fato é que nem sempre os colegiados decisórios, ocupados, no mínimo, por 70% de docentes, conforme determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996), estão preparados para enfrentar situações de efeitos imprevisíveis ou desconhecidos a médio e longo prazos; nem sempre pesquisadores e docentes altamente reconhecidos em suas áreas de atuação são bons gestores financeiros ou administrativos, sendo certo que decisões equivocadas põem em risco os fins e os valores institucionais.
Importante lembrar que esse modelo deriva das universidades medievais, organizadas conforme as corporações de ofício. Embora a inadequação dessa estrutura às universidades contemporâneas seja auto evidente, não foi suficiente, até o momento, para provocar mudanças inovadoras em seu padrão decisório, particularmente nas universidades públicas. O tema é delicado, requer análises e avaliações responsáveis, mas é certo que a resistência a mudanças em favor de gestores profissionais que deem suporte qualificado aos colegiados pode ter consequências desastrosas.
Nesse sentido, vale levar em conta a necessidade da formação de líderes e técnicos universitários pelas próprias instituições, por meio de ensino e pesquisa, repensar o número, o tamanho e a composição dos colegiados, atualizar os processos decisórios, ajustar estruturas e prepara-se para transformações constantes, em ambiente altamente complexo.