Categorias
Conteúdos Destaques Fórum

O Futuro do Trabalho Pós-Pandemia de COVID-19

O Secretário de Ciência e tecnologia do RS, Prof. Luís C. Lamb aborda os Impactos das transformações no campo da tecnologia e das ciências no futuro do trabalho e da educação

Reflexões sobre os Impactos da Inteligência Artificial, Ciência e Educação

Sobre o autor

Luís C. Lamb
Instituto de Informática
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 91501-970, Brasil

Vivemos em uma era de transformações econômicas e tecnológicas. Estas transformações, particularmente no mundo do trabalho, têm sido aceleradas nas últimas décadas pela evolução das tecnologias digitais com origem na Ciência, particularmente na Computação. Neste artigo, faremos um breve panorama da evolução e impactos de áreas como Inteligência Artificial (IA) e Ciência da Computação no mundo atual. Abordaremos o recente impacto dos dados e conhecimento no mercado de trabalho, o valor dos intangíveis, a necessidade da educação científica neste contexto, bem como algumas de suas implicações sócio-econômicas, particularmente para o Brasil. 

  1. Introdução 

Iniciamos com um alerta de Harari sobre o futuro do trabalho em um de seus best-sellers sobre a história da humanidade, “21 Lessons for the 21st Century” [Harari, 2018]: 

“Não temos idéia de como será o mercado de trabalho em 2050. É geralmente aceito que o aprendizado de máquina e a robótica modificarão quase todas as linhas de trabalho, da produção de iogurtes ao ensino de ioga. […] Alguns acreditam que dentro de apenas uma ou duas décadas, bilhões de pessoas se tornarão economicamente redundantes. Outros afirmam que, mesmo a longo prazo, a automação continuará gerando novos empregos e maior prosperidade para todos. Então, estamos à beira de uma revolta aterrorizante, ou essas previsões são outro exemplo de histeria ludita mal fundamentada? É difícil dizer. […] Desde o início da revolução industrial, para cada posto de trabalho perdido para uma máquina, pelo menos um novo trabalho foi criado, e o padrão de vida médio [da humanidade] aumentou dramaticamente. No entanto, existem boas razões para pensar que desta vez é diferente e que o aprendizado de máquina será um verdadeiro divisor de águas.” (Tradução do autor)

No mundo contemporâneo, a dita transformação digital está impactando as organizações de diversas formas. Estas transformações passam, também, pela modificação das relações de trabalho nos diversos setores da economia [World Economic Forum, 2016]. A adoção de tecnologias digitais tornou-se requisito essencial para qualquer organização, pública ou privada. Tecnologias digitais como, por exemplo, a Inteligência Artificial (IA) tornaram-se mais do que diferenciais competitivos em virtualmente todos os setores da economia, sendo decisivos para a preservação de negócios [McKinsey, 2018]. 

Esta transformação digital das organizações impactam o propósito, objetivos e os negócios das organizações. Na economia atual, ao contrário dos séculos passados, as pessoas constituem o maior patrimônio das organizações, notadamente pelo conhecimento que detêm. A propriedade intelectual das empresas passa a estar concentrada não apenas nos seus registros formais (patentes, desenhos industriais, propriedade intelectual, entre outros), mas também nas habilidades, competências e formação dos seus recursos humanos. No entanto, as transformações tecnológicas dos últimos anos têm apresentado um cenário desafiador tanto para a força de trabalho, quanto para acionistas e gestores: a transformação da economia e a dita quarta revolução industrial têm demandado nova formação e educação permanentes dentro das próprias organizações [World Bank, 2019] 

Existe, de fato, uma mudança na natureza do trabalho, apontada em diversos estudos recentes [Brynjolfsson & McAfee, 2014; World Bank, 2019]. Esta mudança na natureza do trabalho leva a impactos sobre as organizações, sobre os seus membros e se estende à sociedade e aos países. Se no passado a revolução industrial causou disrupções nas economias e demonstrou haver um grande número de trabalhadores que não estavam adaptados àquela revolução, agora o mundo é confrontado com uma nova transformação revolucionária, igualmente baseada no conhecimento. 

No entanto, em se tratando de uma transformação disruptiva, causada por uma tecnologia pervasiva, a necessidade de reeducação da força de trabalho faz-se urgente. Mas temos uma condição de contorno árdua a vencer: a educação e formação para a área exigem uma formação contínua, de base lógico-matemática que nem todos os países têm condições de oferecer para milhões de pessoas [PISA, 2018]. A seguir, refletimos sobre o impacto recente que a ciência e tecnologias têm causado na economia do século XXI.

  1. O Papel da Inteligência Artificial, da Ciência e Inovação na Economia do Intangível

Estudos de renomadas consultorias indicam que o impacto da Inteligência Artificial na economia pode ser estimado em mais de 15,7 trilhões de dólares na próxima década [Rao and Verweij, 2017]. Deste valor estimado, 6,6 trilhões ocorrerão no aumento da produtividade, enquanto 9,1 trilhões estão associados aos efeitos sobre o consumo. Este impacto ocorrerá em todos os setores da economia. Além disso, [Brynjolfsson et. al., 2019] nos alertam sobre a necessidade de considerarmos, inclusive no Produto Interno Bruto, o valor intangível dos bens digitais. Muitos destes bens digitais são derivados de técnicas e ferramentas da inteligência artificial e ciência da computação.  

Brynjolfsson e seus colaboradores reportam experimentos nos quais os consumidores são convidados a avaliar o preço dos bens digitais que consomem diariamente (como as redes sociais, Instagram, Facebook e motores de busca, como Google). Os resultados reportados indicam que os consumidores atribuiriam preços mensais que estariam dispostos a pagar. Os resultados estimam que os consumidores pagariam entre 40 dólares (no caso do Facebook) até 1.500 dólares por mês (no caso dos motores de busca, como google) pelos serviços obtidos hoje gratuitamente. A consequência do estudo é um forte indício do valor agregado que estes bens digitais trazem à economia. No entanto, este valor não é mensurado perfeitamente no momento, inclusive no cálculo do PIB dos países [Brynjolfsson et. al., 2019].

Adicionalmente, indicadores econômicos mostram que, nas últimas décadas, organizações de base tecnológica (as “big 5”- Amazon, Microsoft, Alphabet (Google), Apple e Facebook) tiveram valorizações crescentes em termos de capitalização de mercado. A valorização das ações destas empresas representa, entre outros fatores, uma expectativa de desempenho baseada nas tecnologias e dados que estas empresas detêm. Se os “dados são o novo petróleo”, como publicou o semanário inglês “The Economist”, em 2017, pelo menos em termos de capitalização de mercado, há sinais de que isto pode ser a nova realidade. 

Em junho de 2020, Amazon, Microsoft e Apple atingiram, cada uma, mais de 1,3 trilhões de dólares de capitalização de mercado. Neste mesmo tempo, a gigante de óleo e gás, maior do setor nos EUA – ExxonMobil, uma das “sete irmãs” oriunda do antigo monopólio da Standard Oil de John D. Rockefeller, ícone da indústria, atingiu valor abaixo de 300 bilhões de dólares. 

Estes números ilustram algumas características da economia do intangível: organizações centradas em dados, conhecimento e capital intelectual hoje têm maior percepção de valor entre investidores. Essencial também afirmar que a base de negócios e tecnologias destas empresas é fundamentada na ciência da computação e, recentemente, na adoção de tecnologias inovadoras de inteligência artificial e aprendizado de máquina. De fato, temos de refletir e perceber que a adoção destas tecnologias fez com que estas empresas se tornassem paradigmas de uma nova era da economia do conhecimento. 

As transformações provocadas pela disseminação da inteligência artificial serão pervasivas [McKinsey, 2018]. Ao contrário de tecnologias inovadoras do passado recente – como o surgimento da web – a Inteligência Artificial tem maior potencial de impacto econômico, social, cultural e político por ser uma tecnologia de aplicação e impacto em todos os setores econômicos: no agronegócio, na indústria, no comércio, nos serviços, tanto no setor público, quanto privado. A adoção rápida de tecnologias desenvolvidas na academia tem transformado os negócios no século XXI. Um outro exemplo, de tecnologia relativamente recente, de grande impacto sobre o setor do comércio e serviços, é a própria web (ou, popularmente “www”). A web surge em 1989, no CERN (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares). Concebida para permitir o compartilhamento de informações entre cientistas de universidades e centros de pesquisa, o potencial de impacto desta tecnologia foi muito além dos laboratórios acadêmicos. 

Da mesma forma, os avanços recentes da IA surgiram na academia, notadamente a partir dos trabalhos de Geoff Hinton, Yoshua Bengio e Yann LeCun que por décadas perseveraram nas pesquisas em aprendizado de máquina, particularmente focados em redes neurais artificiais [McKinsey, 2018]. Resultados muito significativos provocaram quebras de paradigma em áreas como processamento de linguagem natural, tradução automática entre línguas, visão computacional, processamento de imagens e reconhecimento de padrões [Lamb et al, 2020, McKinsey, 2018; Rao and Verweij, 2017]. Entretanto, grandes desafios permanecem, como a “explicabilidade” e interpretação dos sistemas baseados em IA, a integração entre raciocínio e aprendizado de máquina [Lamb et al, 2020] visando garantir a segurança e confiança nos sistemas baseados em IA. Esta expectativa atende tanto requisitos de segurança necessários ao usuário final, quanto dos profissionais e organizações que utilizam estas tecnologias comercialmente.  

  1. Reflexões Sobre a Sustentabilidade e a Educação na Nova Economia 

É igualmente relevante considerarmos a questão da sustentabilidade e consequências sociais dos empreendimentos na nova economia. A consciência sobre a necessidade de melhor gestão dos recursos naturais obriga as corporações a consideraram as consequências ambientais, a sustentabilidade e a governança responsável no centro de seus negócios. Mazzucato lembra que estas características inovadoras e baseadas no conhecimento serão decisivas inclusive na obtenção de investimentos ao longo das próximas décadas . Uma abordagem de desenvolvimento baseada na economia circular, sustentável igualmente requer maiores investimentos em ciência e tecnologia que viabilizem negócios alinhados às expectativas de consumidores com crescente consciência ambiental, particularmente no ocidente capitalista e no leste asiático [Mazzucato, 2015].

Aliado a estes fatores, o The Economist Intelligent Unit [2020, 2020a], nos alerta sobre o impacto que a crise da COVID-19 terá sobre as cadeias de suprimento, a indústria e setores como turismo (um setor altamente intensivo em mão de obra), e-commerce, telecomunicações e transmissão de dados, o domínio chinês de tecnologias como 5G, cruciais como infraestrutura de transmissão de dados nos próximos anos da década de 2020. Outro fator relevante, também apresentado nestes relatórios, é a dependência do modelo de verticalização, que levou a indústria ocidental a depender significativamente na sua cadeia de fornecedores dos países asiáticos, notadamente da China. Assim, além da recessão provocada pela pandemia, a economia mundial terá de lidar com os desafios de sustentabilidade, impacto social, governança e a dependência estrutural de grande parte dos setores industriais ocidentais de fornecedores e parceiros asiáticos. Este cenário impõe desafios de empregabilidade. No primeiro semestre de 2020, o desemprego atingiu índices altos em todo mundo, particularmente no ocidente. 

No entanto, já em 2019, o Banco Mundial alertava para as mudanças na natureza do trabalho [World Bank, 2019]. Algumas recomendações são sugeridas, entre elas destacamos uma que se refere à formação de capital humano. O Banco Mundial recomenda o investimento no capital humano, particularmente nos anos iniciais da educação infantil, visando o desenvolvimento de habilidades cognitivas e socio-comportamentais além de habilidades fundamentais, como o letramento e numeramento. No cenário pós-COVID-19, a necessidade de “digital literacy”, ou competência digital (que vai além da mera alfabetização digital) torna-se ainda mais evidente. 

Cabe mencionar que o exame PISA (Programme for International Student Assessment) realizado pela OECD, [PISA, 2018], a partir de 2021 avaliará o aprendizado dos estudantes em raciocínio computacional. Esta habilidade, no século XXI, além da leitura e numeramento é essencial no mundo do trabalho. O letramento matemático, no mundo contemporâneo demanda o conhecimento básico da lógica e raciocínio computacional, essenciais na ciência e em todos os domínios da economia moderna. 

De acordo com o Banco Mundial, em muitos países, mesmo após cinco anos de estudo, os alunos ainda não atingiram níveis básicos de alfabetização e numeramento (aritmética) [World Bank, 2019]. Ao avaliarmos o raciocínio computacional em nosso país, em 2021, poderemos identificar uma outra lacuna que nossas políticas educacionais não foram capazes de endereçar até o momento, pois, não há – passados um quinto do século do conhecimento – adoção nacional uniforme nos currículos escolares de disciplinas vinculadas à Ciência da Computação. Talvez a obrigatoriedade e a aferição de raciocínio computacional no PISA e suas consequências sobre o ranking que o Brasil virá a ocupar em 2021 virão a pressionar o sistema de ensino brasileiro a incluir a Ciência da Computação como componente curricular obrigatório. 

Portanto faz-se necessário revermos os objetivos da nossa educação, que infelizmente ainda não oferece os conteúdos necessários ao estudante do século do conhecimento. Este estudante terá de enfrentar uma longa jornada de trabalho na qual o conhecimento científico é fator diferencial, pois se avizinha uma economia cada vez mais complexa e demandante de conhecimento resultante de habilidades cognitivas e sociocomportamentais de alto nível.  

Finalmente, cabe lembrar Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, em “The Second Machine Age” [Brynjolfsson & McAfee, 2014]: “Technology is not destiny. We shape our destiny. (Tecnologia não é destino. Nós moldamos nosso destino.)” Sem dúvidas a tecnologia não define nossos destinos; nós somos responsáveis por ele, mas precisamos urgentemente perceber as consequências sobre o futuro dos países, particularmente do Brasil. É notório que o conhecimento é fator dominante na geração de riquezas na nova economia. Precisamos, portanto, considerar em nossas decisões e estratégias nacionais de desenvolvimento objetivo significativamente consonantes à dita quarta revolução industrial. 

  1. Referências: 

[Brynjolfsson & McAfee, 2014]. E. Brynjolfsson & A. McAfee. The second machine age: Work, progress, and   prosperity   in   a   time   of   brilliant   technologies.   WW Norton & Company, 2014.

[Brynjolfsson et. al., 2019] Erik Brynjolfsson, Avinash Collis, W. Erwin Diewert, Felix Eggers, Kevin J. Fox: GDP-B: Accounting for the Value of New and Free Goods in the Digital Economy. NBER Working Paper No. 25695, March 2019

[The Economist, 2020] COVID-19: The impact on industry. The Economist Intelligent Unit, London, 2020.

[The Economist, 2020a] Covid-19 to send almost all G20 countries into a recession. The Economist Intelligent Unit, London, 2020.

[Harari, 2018] Yuval Noah Harari: 21 Lessons for the 21st Century. Spiegel & Grau, New York, 2018. 

[Lamb et al, 2020] L.C. Lamb, A. Garcez, M. Gori, M. Prates, P. Avelar & M.Y. Vardi. Graph Neural Networks Meet Neural-Symbolic Computing: A Survey and Perspective. International Joint Conference on Artificial Intelligence – IJCAI-2020. Yokohama, 2020.

[Mazzucato, 2015] M. Mazzucato. The Entrepreneurial State: Debunking the Public vs. Private Sector Myths, Revised Edition. Public Affairs, New York, 2015.  

[McKinsey, 2018] McKinsey Global Institute. Notes from the AI frontier: Insights from hundreds of use cases. New York, London, 2018.

[PISA, 2018] PISA 2021 Mathematics Framework (second draft). OECD, Paris, 2018.

[Rao and Verweij, 2017] Anand S. Rao and Gerard Verweij: PwC – What’s the real value of AI for your business and how can you capitalise? PwC, New York, 2017.

[World Bank, 2019] World Development Report 2019: The Changing Nature of Work. The World Bank, Washington DC, 2019. doi: 10.1596/978-1-4648-1328-3.

[World Economic Forum, 2016] World Economic Forum: White Paper Digital Transformation of Industries: Digital Enterprise, 2016.